quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Flávio Lopes da Silva e Manuela Carvalho | [As moléculas do sono entraram pela antena do carro]


As moléculas do sono entraram pela antena do carro
E uma andorinha com um ciclista ao peito
Surgiu na espuma do café marca Xis
Van Gogh percebeu a jogada
E imediatamente traduziu a natureza para sete idiomas gestuais
Um idiota, de altos temperos, vinha a passar
e cumprimentou toda a gente num dilúvio caseiro
Por causa disso, um tigre abandonou a escola
E um senhor da bancada evangelizou um mosquito com mostarda.
Moral da história: um peixe de espada à cinta abandonou a história aos cinco meses de tropa
Foi chamado à paternidade de uma baleia civilizada
Com trinta e duas pistolas apontadas ao carrossel
* (enquanto o poeta montou um pássaro no espelho e mergulhou) 

Flávio Lopes da Sila
& Manuela Carvalho (* verso criado pela autora em comentário na publicação do poema no facebook, a completar o poema)

Vicente Huidobro | Atual


Atual
O céu sacode as suas camisas e conta os anos na sua voz

Conta as pedras jogadas no teu peito

E as árvores nos seus sarcófagos torcendo pelas estradas

Pensa na tua carne trêmula

Ouvindo aquela dupla de noites tão diametralmente oposta

Ouvindo as idades da sua idade

Como as flores de ida e volta

A noite parece ouvir o seu céu

Sob a água que aumenta pelo choro do peixe

E todos esperamos com poros abertos

A aparência da beleza nos seus pés de espuma

Entre dois raios de cabeça para baixo.

 Vicente Huidobro

Herberto Helder | A paixão Grega


li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não,
que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega

Herberto Helder

Julio Cortázar | Toco a tua boca

 

Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água

Julio Cortázar
[in O Jogo do Mundo (Rayuela), tradução de Alberto Simões, Cavalo de Ferro, 2008]

Claudio Bertoni | [Eu gostava de ser um ninho se tu fosses um pássaro]



Eu gostava de ser um ninho se tu fosses um pássaro
gostava de ser um cachecol se tu fosses um pescoço e tivesses frio
se fosses música eu seria um ouvido
se fosses água eu seria um copo
se fosses luz eu seria um olho
se fosses pé eu seria uma peúga
se fosses o mar eu seria uma praia
e se fosses o mar outra vez eu seria um peixe
e nadaria por ti fora
e se fosses o mar eu seria sal
e se eu fosse sal
tu serias uma alface um abacate
ou ao menos um ovo estrelado
e se fosses um ovo estrelado
eu seria um bocado de pão
e se eu fosse um bocado de pão
tu serias manteiga ou marmelada
e se tu fosses marmelada
eu seria o marmelo da marmelada
e se eu fosse um marmelo
tu serias uma árvore
e se tu fosses árvore
eu seria a tua seiva e correria
por teus braços como sangue
e se eu fosse sangue
moraria no teu
coração.

Claudio Bertoni